Pessoa jurídica

Julherme J. Pires
7 min readJan 18, 2021

Ficção por Julherme J. Pires / Ilustração de Alan Dal Pizzol

Madson encontra o chaveiro vazio, as chaves estão em cima da mesa. Embaixo delas há um panfleto: “Sombras, 08/11/2019, 19h, Salão de Atos da UFRGS”. Acima do informe, uma foto de sua filha mais velha em destaque. “Estrelando: Amanda da Silva, no papel de Carolina”. Ele pega o panfleto e arrasta o polegar sobre a imagem de seu rosto. Tem o impulso de ir até o quarto dela, dar-lhe um bom dia, mas se lembra que está atrasado. E seria um pecado lhe roubar o sono justo hoje.

Enquanto dirige o seu Nissan Kicks, pensa nos dois filhos menores, a essa hora já na sala de aula — o menor com dor-de-garganta, tadinho. Na chegada ao Santander vê pichado na parede ao lado da porta-giratória: “FOGO NOS RACISTAS”. O guarda, um homem negro como Madson, faz um sinal de consternação com os braços.

Madson desce do carro e, ainda no estacionamento, começa a projetar o dia: as tarefas, os atendimentos, as complexidades. Colocando o pé dentro da agência, lembra-se da namorada. Ela está de aniversário e prestes a viajar para um estágio de dois meses em Barcelona, partindo num voo da madrugada. Numa gravação sonora enviada pelo WhatsApp, às dez, ela conta o combinado com o pessoal da AIESEC: um happy hour na casa dela, às dezenove. O convite-convocação a ele implícito-explícito.

“Às sete”, porra, às sete não dá. Mas a que horas então? Ele sairá do banco só às seis, e ela, com esse voo, não pode fazer nada mais tarde. Fora que é difícil reunir todo mundo, e isso já seria um pecado estragar. Bom, de qualquer modo, ela vai entender.

— Que tal almoçarmos ali no Chalé da Praça XV? — escreveu a ela.

O almoço será a oportunidade de comemoração e de despedida, já que às sete é o horário da peça. Será a estreia de Amanda como protagonista, logo no terceiro semestre do curso. Ela sonha em atuar desde que a levaram a uma peça infantil no Praia de Belas, quando ainda era filha única. Uma das mais belas lembranças de Madson, tanto pela espontaneidade de Amanda, acompanhando os gestos dos atores, quanto de Tereza, sua esposa, que Deus a tenha, segurando sua mão com uma firmeza inédita. Naquele mesmo dia ela anunciaria a segunda gravidez.

O primeiro cliente se senta à mesa de Madson, já são onze horas. Ele anuncia que planeja um empréstimo para comprar cinco frízeres para a sua sorveteria. Enquanto o homem argumenta sobre a necessidade de se investir quando todos estão amedrontados com a economia, Madson sente uma movimentação incomum entre os funcionários. Um dos caixas faltara e as cadeiras já não dão conta de suportar o volume de clientes na fila. A administração está tentando contatar o funcionário, mas as ligações são interrompidas por uma mensagem eletrônica, “o número que você ligou não está disponível no momento”, conta-lhe um gerente.

Pouco antes do meio-dia, um dos clientes grita do meio da multidão, ameaça processar o banco por conta da lei dos vinte minutos. Madson sugere que o colega gerente assuma o caixa, enquanto ele se encarrega de atender as pessoas jurídicas.

— Bah, não vai ter almoço daí — diz o colega.

— Pede lá pra pedirem pra nós também — diz Madson.

Um cliente se senta à mesa, esbaforido.

— Homem do céu, tu viu o acidente ali na Siqueira? — diz o cliente. — Meu Deus, deve ter arrebentado o motoqueiro. Até esqueci o que eu vim fazer aqui, bicho.

Madson pede um instante, abre o WhatsApp no computador e escreve para Evelin, cancelando o almoço. O cliente se abana, tira um lenço do bolso e limpa o suor da testa. É um homem baixo, gordo e careca, a pele vermelha, desbotada. Tem um sotaque da região metropolitana. Evelin responde “ok”.

— É o seguinte, ô, seu gerente. A gente tem um punhado de vaca, mas me roubaram duas e o prejuízo é grande, ô — diz o cliente. — A gente precisa de um dinheiro pra poder respirar, não tá fácil.

Madson insere os dados do cliente no sistema e identifica que ele já tem um empréstimo em aberto, e que duas parcelas estão atrasadas.

— Mas é isso aí, ô, eu vim aqui, não é a minha agência, pra poder falar com um gerentão, que manda… e que vai abrir essa linha pra mim aí, ô.

— Não é possível, seu Comerlino. O senhor, ou melhor, a sua situação não cumpre as condições para um segundo empréstimo.

Seu Comerlino fica ainda mais vermelho e pousa a mão na mesa. Com a voz mais calma diz que não sai dali até conseguir uma solução, precisa de quinze mil. Madson é obrigado a ocupar a mesa do colega para atender outro cliente, enquanto Comerlino resmunga alguma coisa sobre o motoqueiro sangrando na Siqueira. Seria um pecado atormentar ainda mais o seu Comerlino com uma cena na agência.

Madson atende cinco clientes de forma ágil, protocolar. Às treze e quinze, se junta a um grupo na salinha da administração para comer a marmita. Enquanto passava pela própria mesa, ouviu o seu Comerlino gritar que iria cancelar a “essa conta de merda”. O arroz e o feijão estão mornos ainda, mas o galeto, gelado, e a alface e as fritas, murchas.

Depois de almoçar, ainda tem vinte minutos de intervalo. Saca o smartphone do bolso e envia mensagens a Evelin, tentando convencê-la a fazer algo mais tarde com o argumento de que ela poderia dormir a tarde.

— Ah, jura que vou dormir de tarde — diz ela. — Já marquei unhas, cabelo, tudo… Mozi, é só uma apresentação de fim de semestre, vão ter várias como essa ao longo do curso. Eu não sei se você tá conseguindo dimensionar as coisas. Ela vai entender. Meu aniversário! Viagem! Dois meses!!!!!!!111

— Tu não entende.

— Tu que não entende. Por que eu não entendo? Porque eu não tenho filhos, é isso?

Ele não responde e volta à própria mesa. Seu Comerlino já não ocupa mais o lugar. Um cliente se senta à mesa sem ter sido chamado.

— Só um instante — diz Madson.

Ele abre o WhatsApp no computador, a janela de Amanda. Ela enviara uma figurinha com a cara da cantora Ludmilla, onde lê-se abaixo: “É HOJE”. Madson ri, lembra do cliente, e responde com um gif de Leonardo DiCaprio no papel de Jay Gastby brindando em frente a fogos de artifício. Ele ouve uma discussão entre os clientes. O homem sentado a sua frente recém tinha entrado na agência, e dois outros querem forçá-lo a voltar para as cadeiras de espera. O segurança aparece para evitar uma briga.

— Se tu sair do zap zap, talvez consiga organizar essa joça — diz um dos homens.

Lá fora, o outro segurança sai para imobilizar um velho que chutava o caixa eletrônico.

Um funcionário da administração é designado ao caixa e o outro gerente volta ao posto. A fila de pessoas jurídicas anda mais rápido e se esgota no meio da tarde. Madson abre a janela de Amanda no WhatsApp e escreve uma mensagem sobre a importância de Evelin na vida dele, como ela faz bem à família, e sobre a certeza de que a partir dessa apresentação Amanda da Silva se tornaria um nome conhecido no mundo dos espetáculos. Antes de ele enviar a mensagem, porém, o seu colega de gerência se senta na cadeira do cliente e lhe conta que o funcionário faltante morrera a caminho do hospital, vítima de um acidente de moto na Siqueira.

Depois de se olhar no espelho do banheiro, Madson se ocupa dos minutos seguintes em editar o texto para Amanda, cortando as partes sobre Evelin e confirmando a presença da família no auditório. Após enviar a mensagem, uma jovem negra em terno claro se senta à mesa. É uma empreendedora que está abrindo uma startup de aplicativo para diaristas. É a última cliente, pois as portas acabaram de ser fechadas, e Madson a atende com animada consternação. Mostra-lhe as várias linhas de crédito e as possibilidades de acompanhamento financeiro que o banco é capaz de oferecer aos jovens empreendedores.

Encerrado o expediente, ele se dirige até a casa de sua ex-sogra, Jesuína, onde os seus filhos o esperam para irem à peça. Mas quem abre a porta é Evelin, mais pálida do que o normal. Ela o abraça como se a situação fosse esperada e desejável. O abraço dura, falta algo. Ele deseja-lhe feliz aniversário e ela o beija de língua. Jesuína e os filhos de Madson aparecem à porta, e ele se desvencilha de Evelin. Ele pergunta se estão todos prontos, mas Evelin intervém dizendo que mesmo tendo teimado bastante, eles acabaram aceitando o convite da festa.

Seria um pecado…

Madson abraça Amanda, enquanto as últimas famílias esvaziam o teatro.

— O teu cabelo tá… — diz Madson, afastando-se para olhá-la, balançando a cabeça para os lados, um sorriso de choro.

— Vambora, eu tô tri cansada — diz Amanda.

O menor tosse, a do meio põe a mão na testa dele e alerta, é um início de febre.

— Vocês deram parabéns pra Evelin? — diz Madson.

Não, pois nem sabiam disso.

Ele tem um acesso de culpa e os dirige até a casa dela. Já são quase onze, e ele toca o interfone. Está frio e o menor continua tossindo. Jesuína diz que talvez fosse melhor passar numa farmácia. Amanda reclama do cansaço. É perigoso ficar por ali, naquela região do Menino Deus. Madson aperta o interfone três vezes seguidas e liga para Evelin. Ela atende e informa que está na casa da mãe, quem a levará ao aeroporto, como vinha avisando há dias. Ele toca todo mundo para dentro do carro e segue falando com Evelin ao telefone, desculpando-se e lhe desejando uma boa viagem.

— Não se pode agradar todo mundo, não é? — diz ela. — Melhoras pro nenê.

FIM

Conto desenvolvido como exercício da Oficina de Criação Literária da PUCRS, em novembro de 2019

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